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Fushigi: um álbum com estranhezas que resistem ao tempo
Vamos imaginar aqui uma situação hipotética: pense que seu cantor(a) favorito(a) acabou de lançar um novo álbum e você quer ouví-lo o quanto antes. Vamos levar em conta que ele/ela é muito popular e as pessoas fazem fila para comprar o álbum no dia do lançamento… E você é um dos sortudos que consegue pegar uma cópia antes de elas se esgotarem.
Assim que você chega em casa, animado, vai até a vitrola ou o CD player (hoje em dia, tá mais pra um serviço de streaming como o Spotify, né?) e coloca o novo álbum pra tocar, mas algo de estranho acontece. A voz do artista parece quase inaudível. Algo não está certo; como quando um lado do fone quebra e você não consegue ouvir direito o que está sendo cantado. A música também parece ter algo de errado; o estilo mudou de forma abrupta em relação ao seu último lançamento.
É mais ou menos esse o sentimento que Akina Nakamori, natural de Kiyose nascida em 1965, causou no público japonês em 1986, quando 不思議 (Fushigi) – que se traduz como “estranho” ou “misterioso” – foi lançado.
Essa história é tão real que em 11 de agosto do mesmo ano, dia do lançamento, milhares de pessoas vieram pedir reembolso em suas cópias, dizendo que elas estavam quebradas e com defeito. Reclamaram que não era possível ouvir a voz de Akina. A questão que eles não sabiam era que o “erro” foi proposital. E a confusão é genuína até para nós, exatamente 35 anos depois, quando este álbum faz aniversário. Qualquer um pode confirmar o feito agora que o álbum foi disponibilizado em todas as plataformas de streaming mundialmente. Por que não experimentar algo diferente dentro da indústria de idols japonesa?
Mas quem são essas “idols”?
Podem ter aqueles que antes de dar uma chance já perguntem “mas quem é essa tal de Akina-sei-lá-oque”? Pra responder essa pergunta precisamos voltar um pouco antes, na década de 1970, quando a cantora ainda era uma criança. Nessa época, com a ajuda de algumas figuras populares, uma nova cultura começou a emergir na Terra do Sol Nascente.
Com a influência dos estilos de música ocidentais chegando ao Oriente e colidindo com a cultura local, um novo ritmo musical surgiu para agradar uma nova geração de jovens que queriam músicas do seu próprio país com uma cara mais próxima de estilos como rock, disco e outros ritmos dançantes que refletissem o momento de otimismo nipônico.
No Japão, desde os anos 1950 havia um estilo musical que estava em evidência, chamado kayokyoku, que se traduz literalmente como “música popular”; era uma mistura de ritmos musicais da década como rock-a-billy, yé-yé, blues e pop tradicional, com as escalas e fórmulas musicais do próprio país. Por ter um som bem próximo à década de 50, o kayo – como às vezes é chamado – teve de se transformar para não perder popularidade. Foi nisso que os ritmos dançantes mais contemporâneos entraram no jogo, se misturando com aquilo que era popular e dando origem à cultura das idols.
As idols, em suma, transparecem uma figura de juventude e inocência que se manifesta principalmente entre as mulheres. As primeiras a ganharem fama, já na década de 70, foram nomes como Saori Minami, que tinha grande popularidade entre o público dos jovens adultos, o dueto Pink Lady, que fez seu nome no público adulto um pouco mais envelhecido, e a lendária Momoe Yamaguchi, que manteve-se no topo das paradas do início ao fim da sua carreira em 1980, quando se casou e se retirou do estrelato. Ela fez sucesso entre os públicos das mais variadas idades e até hoje é um ícone cultural.
E quem é Akina Nakamori?
Quando Momoe se aposentou, a indústria musical sentiu o vácuo de uma grande figura para substituí-la. Foi aí que entrou Akina Nakamori. Ela começou a participar de seus primeiros concursos de calouros no fim da década 70, mas era sempre impossibilitada de ganhá-los por ser muito nova (ela participou de um dos principais concursos do país com apenas 14 anos, e só não ganhou por causa da sua idade). Foi apenas em 1981, já com 16 anos, que ela pode ser declarada vencedora do show de talentos Star Tanjou, conseguindo um contrato com a gravadora Reprise e iniciando sua carreira.
Junto com ela, veio a era de ouro das idols, quando figuras como ela dominavam o cenário musical do Japão. A competição era tão grande que muitos fãs rivalizavam Akina e outras duas cantoras de sucesso da época: Seiko Matsuda e Kyoko Koizumi. Porém, Nakamori sempre se destacava das duas por seu estilo mais maduro e pela voz distintivamente sofisticada.
Ainda em 1981, ela protagonizou músicas que chegaram aos topos das paradas, e todos os anos lançava álbuns e músicas de sucesso, o que lhe ajudou a criar uma reputação e aumentou a rivalidade com suas colegas de indústria. Mas essa briga ficava só no papel, já que todas se ajudavam e comemoravam o sucesso umas das outras.
Os anos 80 também foram anos de transformação social muito grande para as mulheres, que adquiriram cada vez mais visibilidade em um país onde a economia prosperava (nessa época, o Japão era a segunda maior economia do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos). Seiko Matsuda protagonizou um importante episódio quando terminou com seu namorado por ele exigir que ela se retirasse do show business para que se casassem.
Mulheres como Junko Yagami mostraram que “o lugar delas” também podia ser cantando músicas aventureiras e que mostrassem poder ao invés de fragilidade e inocência; Shizuka Kudo saiu do popular grupo de idols Onyanko Club para ter uma carreira de sucesso como cantora de rock pesado. Akina Nakamori não ficou de fora desse momento revolucionário, demonstrando que uma mulher de sucesso no Japão não precisava passar sempre a mesma imagem.
O Contexto de Fushigi
No seu aniversário de 4 anos de carreira, Akina resolveu dar mais um passo em direção à independência. Foi neste ano que ela decidiu que produziria seu próprio disco da maneira como queria e com as letras que tinha feito. Desde 1985, ela já vinha impressionando pelo sucesso em conjunto com outras duas grandes figuras musicais da época: Taeko Ohnuki e EPO, que tinham carreiras musicais de sucesso por si próprias, mas ajudaram a criar arranjos e letras de músicas de seus dois álbuns naquele ano. O sucesso foi estrondoso, o que deu para a idol a coragem de se afastar ainda mais da imagem de inocência imposta pela indústria musical.
Foi nesse contexto que a ideia de Fushigi se realizou, juntando duas grandes influências: a soundtrack do filme O Exorcista e o grupo pioneiro de Elizabeth Fraser Cocteau Twins. Essas influências junto com a banda de estúdio iniciante Eurox deram todos os elementos para que este fosse um álbum memorável na carreira de Akina.
No dia 10 de agosto de 1986, precisamente 34 anos e 364 dias atrás, um dia antes do lançamento do álbum, filas se formaram para comprá-lo logo no lançamento. Porém, a alta quantidade de reverb em todas as músicas e o estilo de canto fantasmagórico estranharam o público japonês, uma vez que a cantora era conhecida por seu jeito sofisticado e estava se aventurando em estilos musicais das vanguardas de países como o Reino Unido. Muitos foram pegos de surpresa ao descobrirem que a voz colocada em segundo plano era feita de propósito, e não um defeito de fábrica.
Pouco tempo depois, a cantora fez uma apresentação ao vivo onde coordenou todos os detalhes para que tudo saísse como queria. Nessa apresentação, cantou duas músicas de Fushigi: Back Door Night e マリオネット (Marionette). A apresentação foi um grande choque e foi muito polêmica na época, por mostrar a cantora de música pop em trajes de bruxa e fazendo danças ritualísticas e religiosamente coordenadas. Aquilo mostrou um lado da cantora inesperado para o grande público.
Mesmo com uma queda nas vendas, a guinada na carreira de Akina dada com Fushigi era algo sem volta.
O legado de Fushigi na carreira e na sociedade
Depois de Fushigi, Nakamori se provou uma artista versátil e que sabia passear pelos mais diversos estilos musicais. Mas, ao mesmo tempo, sua vida pessoal tomava um rumo inesperado; enquanto a crítica lhe aclamava por sua versatilidade, o início de um relacionamento abusivo com o ator Masahiko Kondo mostrou como os estigmas da sociedade japonesa ainda permaneciam apesar do que a cantora teve a coragem de fazer.
No fim de 1986, seu álbum inspirado por Elizabeth Fraser deu lugar à uma homenagem à grandes nomes femininos da indústria que lutavam por igualdade, ao qual deu o nome de Crimson. Entre as homenageadas, estava Mariya Takeuchi, que recentemente fez sua fama com a música Plastic Love.
Esses dois álbuns fizeram com que as vendas da cantora começassem a diminuir, e seu namorado não tornava a situação mais fácil. Com abuso psicológico e físico, a situação de Akina foi lentamente se deteriorando. Nos três anos seguintes, a cantora lançou diversos álbuns em estilos diferentes, comprovando novamente sua versatilidade como artista. Mas isso não era o bastante para seu companheiro.
Em 1989, um escândalo na imprensa foi protagonizado por sua rival: Seiko Matsuda. Foi descoberto um caso entre ela e o namorado de Akina. A notícia foi recebida com grande impacto pela cantora; neste mesmo ano, em 11 de julho, Nakamori tentou cometer suicídio no apartamento de Masahiko Kondo, mas felizmente acabou falhando. Sua carreira nunca mais foi a mesma depois disso. Mesmo continuamente lançando novas músicas de grande qualidade, ela nunca mais alcançou o mesmo sucesso que tinha nos anos 80.
Nos últimos 5 anos, porém, sua discografia entrou em evidência no Ocidente e Fushigi foi claramente um destaque entre seus álbuns. Hoje em dia ela é reconhecida internacionalmente pela sua habilidade e versatilidade e é vista como uma artista muito mais complexa do que suas rivais de 30 anos atrás.
Aliado ao que seria do futuro da idol, Fushigi deixa uma impressão bastante pesada por seu estilo musical denso e único. O álbum também deixou uma marca forte na indústria musical do Japão, sendo colocado como um dos precursores do j-pop por possibilitar uma maior variedade imagética e estilística para as cantoras japonesas para além da imagem de simples pureza.
Apesar de ter sido visto com maus olhos 35 anos atrás, é certeza que Akina Nakamori causaria o mesmo espanto nos dias atuais. Mas é apenas com o tempo que se pode reconhecer grandes artistas, pois estes resistem ao envelhecimento e à mudança de contexto social e político.
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Sempre me chamam por Muri! Sou fanático por jogos de RPG e de ritmo. Também tenho fascínio animações e quadrinhos japoneses (animes e mangás), bem como pelo cenário musical nipônico. Atualmente estudo Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero.